A relação de Mãe Stella de Oxóssi com Zélia Gattai e Jorge Amado

| por ROBERTO AGUIAR, jornalista e assessor de comunicação da Fundação Casa de Jorge Amado

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O último dia 2 marcou o centenário da ialorixá e escritora Maria Stella de Azevedo Santos, mais conhecida como Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018). Autora de livros que registram o saber ancestral das religiões de matrizes africanas, ela ocupou a cadeira de número 33 da Academia de Letras da Bahia (ALB), cujo patrono é o poeta Castro Alves, e teve uma relação forte com Zélia Gattai e Jorge Amado na vida material e espiritual.

Jorge Amado tinha o título Obá, posto civil que exercia no Ilê Axé Opô Afonjá, casa de Candomblé da nação de Keto, localizado no bairro de São Gonçalo do Retiro, em Salvador, onde Mãe Stella foi sacerdotisa de 1976 até sua morte em dezembro de 2018.

Nascida em 1925, em Salvador, Mãe Stella foi iniciada no candomblé em 12 de setembro de 1939, aos 14 anos de vida, pela ialorixá Mãe Senhora [Maria Bibiana do Espírito Santo]. Após a iniciação recebeu o nome (orúko) de Ode Kaiodê, que significa ‘caçador traz alegria’. Aos 51 anos de idade, em 17 de junho de 1976, foi escolhida como quinta ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, para substituir Mãe Ondina de Oxalá, morta no ano anterior.

A literatura
Mãe Stella de Oxóssi foi uma grande defensora da cultura afro-brasileira e fez da literatura uma arma nessa guerra. Defendeu com veemência as tradições do Candomblé, preservou os ritos seculares e fez os seus leitores refletirem sobre a importância das religiões de matrizes africanas. Materializou as histórias orais, as vivências, os mitos e as lendas em textos, que a levaram a ser a primeira mãe de santo a se tornar imortal na ALB.

A ialorixá usa a literatura para lançar o brado contra o sincretismo, desvinculando de vez o Candomblé da Igreja Católica e afirmando-o como Religião. Traçou críticas as tais “benesses” do sincretismo, quando os escravos tiveram que adorar santos católicos para driblar os senhores brancos-escravocratas da fé nos orixás africanos. Mãe Stella defende em seus textos o que isso historicamente está defasado. Ela sempre assumiu o candomblé de frente, por isso, escreveu artigos em defesa da importância do Candomblé para o legado da Bahia e do Brasil.

Em um de seus artigos publicados em A TARDE, jornal onde era colunista, disse que “o bom e o bonito é que cada um se fixa na sua crença, nos seus símbolos, na sua energia e não precisa se segurar no outro para mostrar potencialidade”. Os artigos publicados no centenário impresso baiano estão reunidos no livro Opinião — Maria Stella de Azevedo Santos — ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá — Um presente de A TARDE para a história, publicado em 2012.

Mãe Stella tinha profundo respeito pela tradição oral do candomblé, mas sempre defendeu o registro escrito, pois assim iria tornar fiéis seus ensinamentos. Em 12 de setembro de 2013, aos 88 anos de idade, no discurso de posse na ABL, ressaltou que não era “uma literata ‘de cathedra”, que não conhecia “com profundidade as nuances da língua portuguesa”. E afirmou: “sou uma literata por necessidade”.

E pontuou que a literatura, o ato de escrever, era parte do compromisso que assumiu ao se tornar ialorixá em manter viva a história do seu povo:

A sabedoria ancestral do povo africano, que a mim foi transmitida pelos ‘meus mais velhos’ de maneira oral, não pode ser perdida, precisa ser registrada. Não me posso repetir: o que não se registra o tempo leva. É por isso e para isso que escrevo. Compromisso continua sendo a palavra de ordem”.

Esse compromisso, Mãe Stella manteve até o último dia de sua vida. Sempre tendo a literatura, o registro textual de seus aprendizados e ensinamentos orais, como arma, o que se transformou em uma intelectual orgânica da comunidade literária.

A relação com Zélia Gattai e Jorge Amado
A relação de Mãe Stella com Zélia Gattai e Jorge Amado iniciou antes dela se tornar ialorixá. O escritor baiano recebeu o título honorífico do candomblé criado no Ilê Axé Opô Afonjá por Mãe Aninha em 1936. Esses títulos honoríficos de cochilo Obás de Xangô foram concedidos aos amigos e protetores do Terreiro. Jorge foi Obá Arolu.

O Axé Opô Afonjá era o terreiro que Jorge Amado era mais ligado e tinha intimidade. Todas as visitas que faziam à Mãe Senhora, estava lá, sempre lá, Stella. Era uma jovem ainda, muito tranquila e muito simpática, sempre ao lado de Mãe Senhora. A quem Mãe Senhora tinha uma grande estimativa, grande afeição. O Jorge dizia: ‘Mãe Senhora está preparando a Stella para sucedê-la no dia em que ela faltar’”, disse a escritora e esposa de Jorge Amado, Zélia Gattai, em depoimento ao documentário Estrela Azul: Mãe Stella, produzido pela TVE em 2005.

Zélia também revelou como ela e Jorge se tornaram padrinhos de casamento de Mãe Stella. “Um dia recebemos um recado de Mãe Senhora, um convite, que Stella ia casar, convidando a mim e Jorge parte sermos os padrinhos de casamento. E assim foi que fomos padrinho de casamento de Stella“, revelou a autora de Anarquistas, Graças a Deus.

A relação do casal Amado com Stella foi ficando mais forte com o passar do tempo. Uma amizade sustentada no respeito e na admiração, tanto que Jorge proclamava Stella como irmã e a admirava como escritora e como uma das maiores ialorixás do candomblé na Bahia.

Quando Mãe Stella foi escolhida para assumir o posto de ialorixá, Jorge escreveu:

Stella de Oxossi, minha boa irmã […] a yalorixá, acende a aurora dos santos, levanta a bandeira dos orixás. Salve mãe Stella de Oxóssi em seu trono do Axé Opô Afonjá.”

Esse respeito e admiração também era recíproco. Em um dos textos publicados no livro Opinião — Maria Stella de Azevedo Santos — ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá — Um presente de A TARDE para a história, Mãe Stella diz:

Jorge Amado, ateu que acreditou em Oxóssi […] foi escolhido como Obá de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá. Ele foi para nós um Sacerdote ‘Ministro da Justiça’, que atuou de maneira marcante, uma vez que foi através dele que o Candomblé passou a ser constitucionalmente visto como uma religião, o que fez com que seus adeptos não precisassem mais pedir licença à polícia para adorar Olorum — o Grande Criador — e os Orixás — como auxiliares. Filho espiritual da saudosa Mãe Senhora, o deputado Jorge Amado, através de Osvaldo Aranha, entrou em contato com o então Presidente da República — Getúlio Vargas — que instituiu o decreto 1.212, dando liberdade de culto ao conhecido ‘povo de santo’. Xangô, orixá da justiça, que tem no número 12 uma simbologia forte, com certeza estava ao lado de seu ministro.”

Mãe Stella seguirá entre nós
Mãe Stella seguirá viva entre nós pelas palavras escritas e faladas, pelos ensinamentos repassados, e por tudo que foi deixado construído dentro e fora do Ilê Axé Opô Afonjá.

Tudo o que ela fazia era direcionado a colher frutos no futuro, sempre a favor dos seus filhos de casa e da rua, do povo pobre e negro da comunidade ao redor do Terreiro e para longe dele.

Seu legado não tem fronteira, não tem geografia que o encaixe em limites rabiscados em mapas.